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(English) O Grande Gatsby, a Primeira Guerra Mundial e a Pandemia: um ensaio sobre profundidade e superficialidade

(English) O profundo e o mundano:

O Grande Gatsby, a Primeira Guerra Mundial e pandemia

 

Fábio Lopes da Silva

 

 

Introdução

 

O Grande Gatsby, obra-prima do escritor norte-americano Scott Fitzgerald, foi entregue ao editor em novembro de 1924. Já a ação contada no livro se passa um pouco antes, em meados de 1922. Assim é que só um curto intervalo de tempo separa o romance de dois grandes eventos transcorridos ao longo da segunda metade da década anterior: a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a pandemia da chamada Gripe Espanhola (1918-1920). Cabe, portanto, a pergunta: que lugar eles ocupam na obra? Como estão ali representados?

A questão, creio, ganha particular importância agora que estamos atravessando uma convulsão sanitária e econômica de proporções globais, na esteira da propagação da COVID-19. Verificar como a melhor literatura da época metabolizou períodos críticos que atravessou pode nos ajudar a digerir as nossas próprias experiências atuais e as incertezas quanto ao que nos aguarda no futuro.

Particularmente rico de consequências me parece o modo como Nick Carraway, o personagem-narrador, recobra ambos os acontecimentos. É esse o ponto específico em que vou me concentrar no ensaio a seguir.

Procurarei argumentar que a vida vista da perspectiva de Carraway – grandes tragédias históricas aí incluídas – se desenrola como uma estupenda tensão entre o profundo e o superficial, a memória e o esquecimento, os enigmas que reclamam significação e a insignificância.

Dividi o texto em três seções. Na primeira, recorro a alguns trechos da narrativa a fim de caracterizar e ilustrar o que chamo de peculiar neutralidade afetiva de Carraway face aos horrores que havia recentemente testemunhado. Na segunda seção, proponho-me a interpretar essa inesperada neutralidade à luz do conceito psicanalítico de trauma. Já na terceira e última seção, parto de uma frase famosa de Freud – “Às vezes um charuto é apenas um charuto” – para concluir que, no discurso de Nick Carraway, a espessura, a aspereza, a densidade e a opacidade de eventos e seres (o que, claro, é a própria condição de haver trauma) se articula – nos termos de uma estranha sintaxe – ao exato oposto disso: a banalidade, a vulgaridade, a intranscendência das coisas.

 

 

A peculiar neutralidade afetiva de Nick Carraway

 

Primeiro elemento a ser aqui considerado: Nick Carraway integrou as tropas enviadas pelos Estados Unidos ao front europeu a partir de 1917. Disso ficamos sabendo logo no início do texto, quando ele se apresenta ao leitor: “participei daquela migração teutônica protelada conhecida como a Grande Guerra” (p. 7). O tom irônico e afetivamente neutro da passagem surpreende. Reconheça-se: não é o que esperávamos ouvir de alguém que mal acabara de retornar de campos de batalha normalmente descritos como o último círculo do Inferno de Dante.

A essa primeira menção se seguem várias outras, que, em todo caso, só fazem confirmar que uma curiosa distância emocional marca de fato a relação de Carraway com a Primeira Guerra. Tome-se a esse respeito um trecho emblemático, em que ele se dedica a citar uma longa lista de frequentadores da mansão de Jay Gatsby, seu vizinho milionário, por cujos mistérios e personalidade está fascinado. Em meio à enxurrada de indivíduos identificados pelo nome e por uma brevíssima descrição mais ou menos irrelevante, o narrador inclui “o jovem Brewer, que teve o nariz arrancado durante a guerra”. (p.69) Tudo se passa, assim, como se um aleijão decorrente de um tiro de fuzil ou estilhaço de bomba estivesse no mesmo plano que os atributos físicos ou detalhes biográficos por meio dos quais Carraway retrata as outras pessoas arroladas. Uma espécie de vala comum – em que já repousam personagens como “Clarence Endive, que era de East Egg, ao que me lembro”, ou “Edgar Beaver, cujos cabelos, dizem, ficaram brancos numa tarde de inverno sem nenhum motivo justo.” (p. 68) – açambarca Brewer e desmancha no ar a sua suposta especificidade de combatente mutilado.

É também essa aparente neutralidade em face da Primeira Guerra o que está em jogo na presença regular de expressões como ‘antes da Guerra’, ‘durante a Guerra’ ou ‘depois da Guerra’ no texto. Longe de significar que a eclosão do conflito é um divisor de águas e o início de uma nova era, elas operam apenas como um ponto de referência mais ou menos anódino, uma maneira – entre tantas possíveis – de localizar outros eventos na linha do tempo. Mutatis mutandis, sua função é comparável à que atribuímos a um homem alto na multidão: encarnar circunstancialmente um centro fixo em relação ao qual podemos definir a posição dos objetos e indivíduos no espaço.

Vale citar, ainda, uma conversa de Carraway com sua prima Daisy Buchanan no curso da qual, meio a sério, meio brincando, ela o repreende: “Você não foi ao meu casamento”. Ao que ele responde que, à época, “ainda estava na guerra”, sem o menor sinal de contrariedade, espanto ou qualquer outro sentimento digno de nota. A propósito, na única vez em todo o romance em que se refere explicitamente a incidências da guerra sobre seu estado de espírito, Carraway faz um inusitado uso do termo ‘inquieto’, que desde logo tira o peso de sua possível conotação negativa e o coloca em um limbo valorativo – o mesmo ponto morto emocional que ressalta dos excertos acima comentados:

Aproveitei tão bem aquele contra-ataque [da Entente contra os alemães] que voltei para a casa inquieto. Em vez de ser o centro do mundo, o Meio-Oeste [onde vivia com a família] agora parecia a borda do universo – por isso decidi ir para o Leste e aprender o negócio de títulos. (p. 7)

 

 

A neutralidade afetiva de Nick Carraway como efeito de um trauma

 

A lista de exemplos acima declinados está longe de ser completa. Seja como for, já é suficiente, creio, para que eu possa passar à tarefa de tentar compreender a intrigante neutralidade afetiva de Carraway face ao seu próprio passado como soldado. O que a explica, se é que tem explicação?

Uma resposta possível recorre à categoria psicanalítica de trauma, isto é, aquela parte da história e da experiência do indivíduo que é tão penosa, dura, enigmática e difícil que ele simplesmente não consegue falar disso, ou só o consegue disfarçadamente, indiretamente, de maneira lacunar, por intermédio de subterfúgios, alusões, metáforas ou sintomas comportamentais e corporais. Em Estudos sobre a histeria (1895), escrito em parceria com o também médico Josef Breuer, Freud discorre sobre vários casos clínicos em que pacientes desenvolvem uma série de manifestações discursivas e somatizações como forma de simbolizar vivências mais intensas e complexas do que as que seus aparelhos psíquicos eram capazes de suportar.

Talvez, no desenrolar dos combates, Nick tenha visto coisas horrendas demais – destruição, morte, violência, brutalidade –, e por isso evite se demorar sobre essas experiências, se defenda delas ou, sem perceber, seja levado pelo próprio psiquismo a fugir de suas terminações mais desagradáveis. É possível – e seria completamente compreensível se fosse realmente assim – que ele prefira desviar um pouco o olhar, enganar-se, mirando outras coisas ( e aqui uso a palavra ‘mirando’ de caso pensado, a fim de explorar a sua ambiguidade, uma vez que ela significa ‘olhar’, ‘observar’, mas também ‘fazer mira antes de atirar’. A ideia é jogar com a sua duplicidade como uma maneira de dizer que, para Carraway, olhar para outras coisas – mirá-las – seja um modo de não olhar para a guerra – ou, antes, de olhar para ela de viés, através de um objeto substituto, uma metáfora).

Não é demais pensar que, em especial, Carraway se concentre tanto em Jay Gatsby e o observe – mire-o – tão atentamente para não ter que mirar tão de perto o seu próprio passado, as suas memórias, a guerra (que, como Gatsby no título do romance, é também chamada de ‘Grande’, inclusive pelo personagem-narrador). Se tenho razão nessa suposição, o curioso – e o doloroso – é que Gatsby morrerá baleado no final do livro, como um soldado morre no campo de batalha. Tiros, assim, voltam a rondar a vida de Nick Carraway, mesmo que, como parece ser o caso, ele procure escapar deles.

 

 

As festas na mansão de Gatsby como metáfora da guerra

 

Ainda seguindo a trilha dessa leitura psicanaliticamente orientada do romance, quero considerar agora as muitas festas espetaculares que Gatsby oferece em sua mansão. Cumpre notar que Carraway as aborda com certo desprezo, um nojo até. Como ele deixa evidente, o que o incomoda é, sem dúvida, a frivolidade e a mediocridade dos frequentadores, à exceção de Gatsby, que, embora seja o anfitrião e o financiador dos eventos, jamais se entrega ao turbilhão dionisíaco que gira ao seu redor. A questão, contudo, é que, apesar do que sente em relação às festas, Carraway fala bastante – eu quase diria ‘demasiadamente’ – delas. Essa notável insistência me convida à intepretação que apresento abaixo.

Festas, à primeira vista, são o oposto das guerras. Não obstante, precisamente por conta dessa oposição radical, as primeiras podem muito bem ser uma maneira de Carraway falar das segundas. Em particular, as festas promovidas por Jay Gatsby – com seu frenesi, seus ruídos, seus sons e fúrias, suas luzes feéricas, sua fricção intensa de corpos – constitui algo assim como uma imagem invertida da guerra, a sua manifestação por seu contrário, um tipo de manobra que os psicanalistas cansam de ver na rotina clínica (é o que acontece, por exemplo, em certas ocasiões em que o paciente declara não ter determinados pensamentos, quando outras pistas convergem inequivocamente para a conclusão de que ele os tem).

Carraway, como é bem conhecido, mora numa casinha modesta ao lado da mansão de Gatsby – e, portanto, às portas dos megaeventos que ali ocorrem. O mal-estar que essas festas provocam no personagem-narrador devem ser vistas, nesse sentido, como um indício de que ele saiu dos campos de batalha menos ileso do que parece: a repulsa que as festas lhe causam são talvez a repulsa (deslocada para outro objeto) que ele sente pela guerra. Mais ainda: ela, a guerra, está bem mais perto de Carraway do que se poderia inicialmente supor – está, a rigor, na vizinhança.

 

À guisa de conclusão: a vida como tensão entre o profundo e o superfiicial

 

Isso posto, proponho-me doravante a avançar ainda um pouco mais na via demarcada pela psicanálise. Minha aposta é que é uma persistência que pode valer a pena, me levando – e ao leitor, se vier comigo – em uma direção surpreendente, que, na verdade, ressignifica sensivelmente a interpretação que acabei de articular (isto é, a sugestão de tomar a guerra como trauma e como significado oculto do mundo ao redor de Carraway). Senão, vejamos.

Entre as muitas frases famosas de Freud, há aquela em que ele diz que um charuto às vezes é apenas um charuto. Trata-se de uma resposta pessoal do mestre vienense a detratores que, valendo-se da própria psicanálise, pretendiam concluir que os charutos que Freud fumava eram um símbolo fálico em tudo semelhante aos símbolos com significados sexuais subjacentes que ele procuraria por toda parte. Mas a frase é também uma contribuição brilhante e sucinta à teoria e à clínica psicanalítica: o recado adicional de Freud é que, ao contrário do que reza a vulgata psicanalítica, nem tudo são símbolos, e imaginar o contrário é embarcar em uma concepção paranoica de mundo, que a escuta no divã deve cuidadosamente evitar. Certos charutos são símbolos; outros, não: eis o que Freud está a afirmar. Ou talvez ele esteja formulando algo ainda mais radical: que as coisas – ou pelo menos algumas delas: um determinado charuto, por exemplo – são e não são símbolos, ao mesmo tempo. Em outras palavras, elas escondem uma certa profundidade, uma espessura de sentidos a percorrer, mas também, simultaneamente, são apenas coisas que se esgotam em si mesmas, na sua superficialidade, na sua mundanidade, na sua vulgaridade, na sua mediocridade, na sua banalidade.

A hipótese que gostaria de dar a conhecer e minimamente desenvolver na etapa final deste ensaio é que é que justamente como símbolo e banalidade que as festas de Gatsby se apresentam a Carraway e são digeridas por ele. Por um lado, como procurei concluir há pouco, elas são, sim, uma metáfora da guerra (e, portanto, para além das aparências, representam o horror, a destruição e os ritos satânicos dos combates). Mas a isso – tendo em mente as considerações que acabei de fazer sobre a frase célebre de Freud – eu acrescentaria que essas mesmas festas são também “apenas um charuto”, isto é, objetos banais, sem profundidade. Eventos que começam, duram um certo tempo e depois desaparecem.

Em que me baseio para formular essa suposição, por inusitada que ela pareça? No fato de que, ao mesmo tempo em que sente uma certa náusea em face das festas, Carraway participa delas, convive com os convidados, conhece-os, cita-os pelo nome, transita entre eles, fala continuadamente de sua irrelevância, como se, ao fim e ao cabo, aceitasse ao menos em parte dissolver-se no meio da multidão, jogar o jogo que lhe é proposto. É evidente que o personagem-narrador guarda uma certa distância das festas, tenta se preservar da vulgaridade que elas exalam, tenta transcender a superficialidade que elas transpiram; mas é igualmente óbvio que não é completamente bem-sucedido nessa tarefa. Melhor ainda: no fundo, Carraway nem mesmo pretende transcender a vulgaridade, até porque parece saber que não é possível, sustentável ou desejável ser profundo o tempo todo, como Freud, em suas considerações sobre os charutos, adverte. No máximo, Carraway procura acrescentar à sua fina pele humana algum filtro que mitigue a presença dessa vulgaridade em sua vida. E nem isso, seja dito, ele consegue direito.

Lembre-se a esse respeito da já mencionada conversa em que Daisy ralha com Nick Carraway por ele ter faltado ao casamento dela. Sua prima – mulher linda e riquíssima – habita (e empenha-se ardentemente em preservar) a bolha de futilidade e alienação que, por óbvio, esse curto diálogo expressa com certeira concisão. A verdade, contudo, é que a reação de Carraway autoriza a frivolidade da interlocutora e, mais que isso, é conivente com ela.

Há muitas lições a tirar da tensão entre profundidade e mundanidade em que Carraway vive. A que eu pretendo propor a título de conclusão desta breve reflexão se aplica particularmente ao que estamos experimentando a reboque da pandemia da COVID-19. Ei-la: as coisas passam. Guerras acabam. Crises acabam. A vida segue. Mas ela segue de um jeito muito curioso e específico – do único jeito que pode seguir: à custa de uma certa dose de esquecimento, banalidade, vulgaridade, mediocridade, superficialidade, ignorância, falta de empatia. É o preço a pagar, e nada – nem a profundidade, nem algum pathos de distância (expressão cara a Nietzsche, que, como um certo vizinho de Carraway do qual eu pouco tratei, também ansiava desajeitadamente por distinção e nobreza) – é capaz de nos livrar disso. Até que venha a próxima crise, como veio o crash da Bolsa de Nova York, em 1929, cerca de cinco anos depois da publicação de O Grande Gatsby.

Ah, claro, vocês devem estar se perguntando por que discorri tão longamente sobre a relação do romance com a guerra, mas (traindo uma promessa feita na introdução) não disse uma palavra sobre o lugar da pandemia de Gripe Espanhola em O Grande Gatsby. É que, na verdade, ela não é citada uma única vez no livro. Zero. Em vez disso, veja-se o que, logo nas primeiras páginas, Carraway escreve sobre o ar ao seu redor – o mesmo ar que até uns pouquíssimos anos antes era habitado pelo vírus influenza:

 

Assim, com o sol brilhando e as folhas crescendo aos borbotões nas árvores – como as coisas crescem nos filmes rápidos – senti aquela convicção familiar de que a vida recomeçava com o verão.

Primeiro, havia tanto para ler e, depois, tanta saúde a aspirar daquela atmosfera revigorante. (p.8)

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Resumen:

(Português) Neste projeto, recorro sobretudo às ideias de Timothy Snyder, professor da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, com quem tenho tido o prazer de dialogar diretamente nos últimos anos. Pesquisador especializado na história da Europa moderna, ele é hoje um dos mais celebrados intelectuais públicos do planeta. Sua fama fora dos círculos acadêmicos se deve principalmente a Sobre a Tirania, no qual o autor recorre à longa experiência como estudioso de fenômenos autoritários para propor vinte lições do século passado para o presente. Mas não é tanto Sobre a Tirania que vai me interessar na reflexão que me disponho a desenvolver. Meu foco, em vez disso, se concentra no livro seguinte de Snyder, The road to unfreedom, de 2018, que acaba de ser lançado no Brasil com o título de Na contramão da liberdade. O ponto de partida da obra é a tese de que, em larga medida, a vida política depende da maneira como concebemos o tempo. “Para mim”, esclarece Snyder, “ideias de tempo são tão relevantes que açambarcam todas as outras. Vivemos dentro delas, e elas interferem em como vemos o que está à nossa volta. São como uma bolha, ou um filtro. Determinam o que enxergamos e o que não enxergamos, o que pensamos ser possível e o que não nos parece possível.” Isso, a princípio, pode soar estranho e abstrato, mas não é absolutamente esse o caso. Basta considerar que, até recentemente, a maioria de nós acreditou na noção de progresso, isto é, na ideia de que o tempo é uma linha reta que conduz inexoravelmente a um reino de paz e prosperidade. Houve até quem dissesse que o Paraíso era logo ali, e a história havia chegado ao fim. De acordo com essa visão, o único futuro disponível eram as democracias liberais, e quem não se curvasse a essa evidência acabaria em maus lençóis, punido pelos temíveis deuses do destino. Ora, é óbvio que essa maneira de conceber o tempo afeta a conduta de quem se submete a ela. Se creio que o mundo caminha naturalmente na direção de um final feliz, o mais provável é que eu assuma uma postura politicamente conformista, passiva, na certeza de que os ventos da mudança sopram sempre a meu favor. O mais provável, além disso, é que eu desdenhe de modelos políticos e econômicos alternativos e que, ao negligenciá-los, corra o risco de vê-los avançar e eventualmente ameaçar meu modo de vida.

A essa ideia de tempo ancorada na noção de progresso Timothy Snyder dá o nome de política da inevitabilidade. A má notícia é que, neste exato momento, por causa do fracasso reiterado de suas promessas de felicidade, ela está perdendo força e sendo substituída por uma outra concepção geral de tempo, chamada por ele de política da eternidade. Na política da eternidade, a vida se resume à repetição interminável de um único e mesmo ciclo. E o que se repete, a rigor, é um suposto ataque de inimigos externos ou internos – muçulmanos, mexicanos, negros, chineses, comunistas, corruptos etc. – a ‘nós’, a comunidade dos inocentes. Não importa o que façamos, esses adversários estariam sempre em nosso encalço, sempre retornariam, sempre voltariam a rondar nossas portas, cabendo a nós simplesmente nos defender.

Assim como a política da inevitabilidade, a política da eternidade é um convite à passividade e à irresponsabilidade. No primeiro caso, tudo está bem, e não é preciso fazer nada. No segundo, tudo está mal, e não se pode fazer nada. A diferença é que na política da inevitabilidade a liberdade é um ativo que acabamos não usando, ao passo que na política da eternidade a liberdade simplesmente não é mais levada em consideração, desaparecendo completamente da cena. Se a política da inevitabilidade é perigosa para a democracia, a política da eternidade é uma dança à beira do abismo, a aceitação paulatina de um mundo em que a ideia de futuro – e, portanto, a possibilidade de uma circunstância melhor para todos – perde o sentido. Na política da eternidade, não há qualquer esperança: a vida é crise sem fim, ameaça permanente, sofrimento e ansiedade. O niilismo toma a dianteira, destronando o otimismo inconsequente de outrora.

Governantes pelo mundo todo se deram conta do que está acontecendo e passaram a tirar proveito da situação. Em lugar de tentar de algum modo socorrer as pessoas, eles mantêm as coisas como estão ou mesmo tomam medidas que deliberadamente prejudicam a maioria imensa da população, inclusive os seus próprios eleitores. Só que ao mesmo tempo oferecem uma válvula de escape para estes últimos. Sobretudo por meio da internet, martelam à exaustão uma mesma mensagem a seu grupo de apoiadores: ‘Sim, a existência é um vale de lágrimas, e nada posso fazer para mudar isso. Mas resta o consolo de saber que outros sofrem mais do que nós e de que podemos fazê-los sofrer. Eu os autorizo a infligir sofrimento nos inimigos, a agredi-los, a odiá-los, a desprezá-los. E digo mais: quando vocês os maltratarem, não estarão verdadeiramente os atacando, mas se protegendo, porque eles estão sempre prontos a roubar nossas almas, a destruir nossa inocência, nossa pureza e tudo que construímos e em que acreditamos’. Snyder dá a essa nova forma de governo o nome de sadopopulismo, tendo em vista o fato de que, como no sadismo, ela se baseia na administração deliberada da dor (e na gestão dos afetos daí resultantes).

Neste projeto, pretendo apresentar e desenvolver os conceitos de política da inevitabilidade, de política da eternidade e de sadopopulismo. No rastro de Timothy Snyder, é também minha intenção mostrar por que meandros e processos históricos a política da inevitabilidade entrou em colapso, abrindo caminho para a política da eternidade e o sadopopulismo. Procurarei indicar, além disso, que a perspectiva do historiador americano se ajusta bastante bem ao que temos vivido no Brasil. Por décadas, acreditamos no bordão de que éramos o ‘país do futuro’, e o fato de que nossas expectativas acabavam sempre frustradas não nos impedia de continuamente renová-las em outras bases. Creio, entretanto, que já não é mais assim. A pax lulista – o pacto em que alegadamente todos ganhavam o seu quinhão – foi talvez o ápice mas também o último suspiro desse otimismo persistente. Pode ser que o desalento que se seguiu à derrocada do petismo seja um dado passageiro, um breve interlúdio no decorrer do qual terminaremos por encontrar razões para voltarmos a ser o ‘país do futuro’. Mas pode ser também que o niilismo esteja se enraizando em nossas almas, que ele esteja se tornando um modo duradouro de ser. Como ensinam certos tipos de drogadição, é possível viver indefinidamente no sepulcro de vidro de um mundo fechado sobre si próprio, no qual se é devolvido sempre ao mesmo ponto, a um mesmo gozo triste. Argumentarei que é esse o caminho apontado por Jair Bolsonaro e que o Capitão, de resto, é o grande representante do sadopopulismo à brasileira. Mas a isso pretendo acrescentar que, ainda que de maneira atenuada e disfarçada, a política da eternidade – o ambiente no qual o sadopopulismo opera – é também a direção até agora seguida por muitos de seus opositores, nós. Quem disso duvida que se pergunte o que nos leva a nos rendermos aos ritmos avassaladores das redes sociais, não por acaso um terreno onde o atual presidente se move tão bem. Dia após dia, por horas a fio, navegamos no Facebook ou no Twitter para sermos felicitados ou ultrajados por um fluxo interminável de postagens que, ao induzirem sempre a um mesmo tipo de sensação, congelam o tempo, aprisionam-nos em um presente infinito, interditam o futuro. Nas redes sociais, à semelhança do que acontece sob a política da eternidade, tudo se resolve em termos de um ciclo interminável, um ataque permanente a nossos circuitos neuronais, uma excitação constante, uma ansiedade sem fim, à qual estamos passivamente ligados, já que sua origem está fora de nós, para além de nosso controle. Nas redes sociais, à semelhança do que ocorre sob a política da eternidade, a única saída possível é agredir os outros ou entregar-se ao que se tem chamado de ostentação, uma clara tentativa de compensar a miséria da própria existência com a humilhação dos que são expostos às nossas publicações.

 


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