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Resumen:

(Português) Neste projeto, recorro sobretudo às ideias de Timothy Snyder, professor da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, com quem tenho tido o prazer de dialogar diretamente nos últimos anos. Pesquisador especializado na história da Europa moderna, ele é hoje um dos mais celebrados intelectuais públicos do planeta. Sua fama fora dos círculos acadêmicos se deve principalmente a Sobre a Tirania, no qual o autor recorre à longa experiência como estudioso de fenômenos autoritários para propor vinte lições do século passado para o presente. Mas não é tanto Sobre a Tirania que vai me interessar na reflexão que me disponho a desenvolver. Meu foco, em vez disso, se concentra no livro seguinte de Snyder, The road to unfreedom, de 2018, que acaba de ser lançado no Brasil com o título de Na contramão da liberdade. O ponto de partida da obra é a tese de que, em larga medida, a vida política depende da maneira como concebemos o tempo. “Para mim”, esclarece Snyder, “ideias de tempo são tão relevantes que açambarcam todas as outras. Vivemos dentro delas, e elas interferem em como vemos o que está à nossa volta. São como uma bolha, ou um filtro. Determinam o que enxergamos e o que não enxergamos, o que pensamos ser possível e o que não nos parece possível.” Isso, a princípio, pode soar estranho e abstrato, mas não é absolutamente esse o caso. Basta considerar que, até recentemente, a maioria de nós acreditou na noção de progresso, isto é, na ideia de que o tempo é uma linha reta que conduz inexoravelmente a um reino de paz e prosperidade. Houve até quem dissesse que o Paraíso era logo ali, e a história havia chegado ao fim. De acordo com essa visão, o único futuro disponível eram as democracias liberais, e quem não se curvasse a essa evidência acabaria em maus lençóis, punido pelos temíveis deuses do destino. Ora, é óbvio que essa maneira de conceber o tempo afeta a conduta de quem se submete a ela. Se creio que o mundo caminha naturalmente na direção de um final feliz, o mais provável é que eu assuma uma postura politicamente conformista, passiva, na certeza de que os ventos da mudança sopram sempre a meu favor. O mais provável, além disso, é que eu desdenhe de modelos políticos e econômicos alternativos e que, ao negligenciá-los, corra o risco de vê-los avançar e eventualmente ameaçar meu modo de vida.

A essa ideia de tempo ancorada na noção de progresso Timothy Snyder dá o nome de política da inevitabilidade. A má notícia é que, neste exato momento, por causa do fracasso reiterado de suas promessas de felicidade, ela está perdendo força e sendo substituída por uma outra concepção geral de tempo, chamada por ele de política da eternidade. Na política da eternidade, a vida se resume à repetição interminável de um único e mesmo ciclo. E o que se repete, a rigor, é um suposto ataque de inimigos externos ou internos – muçulmanos, mexicanos, negros, chineses, comunistas, corruptos etc. – a ‘nós’, a comunidade dos inocentes. Não importa o que façamos, esses adversários estariam sempre em nosso encalço, sempre retornariam, sempre voltariam a rondar nossas portas, cabendo a nós simplesmente nos defender.

Assim como a política da inevitabilidade, a política da eternidade é um convite à passividade e à irresponsabilidade. No primeiro caso, tudo está bem, e não é preciso fazer nada. No segundo, tudo está mal, e não se pode fazer nada. A diferença é que na política da inevitabilidade a liberdade é um ativo que acabamos não usando, ao passo que na política da eternidade a liberdade simplesmente não é mais levada em consideração, desaparecendo completamente da cena. Se a política da inevitabilidade é perigosa para a democracia, a política da eternidade é uma dança à beira do abismo, a aceitação paulatina de um mundo em que a ideia de futuro – e, portanto, a possibilidade de uma circunstância melhor para todos – perde o sentido. Na política da eternidade, não há qualquer esperança: a vida é crise sem fim, ameaça permanente, sofrimento e ansiedade. O niilismo toma a dianteira, destronando o otimismo inconsequente de outrora.

Governantes pelo mundo todo se deram conta do que está acontecendo e passaram a tirar proveito da situação. Em lugar de tentar de algum modo socorrer as pessoas, eles mantêm as coisas como estão ou mesmo tomam medidas que deliberadamente prejudicam a maioria imensa da população, inclusive os seus próprios eleitores. Só que ao mesmo tempo oferecem uma válvula de escape para estes últimos. Sobretudo por meio da internet, martelam à exaustão uma mesma mensagem a seu grupo de apoiadores: ‘Sim, a existência é um vale de lágrimas, e nada posso fazer para mudar isso. Mas resta o consolo de saber que outros sofrem mais do que nós e de que podemos fazê-los sofrer. Eu os autorizo a infligir sofrimento nos inimigos, a agredi-los, a odiá-los, a desprezá-los. E digo mais: quando vocês os maltratarem, não estarão verdadeiramente os atacando, mas se protegendo, porque eles estão sempre prontos a roubar nossas almas, a destruir nossa inocência, nossa pureza e tudo que construímos e em que acreditamos’. Snyder dá a essa nova forma de governo o nome de sadopopulismo, tendo em vista o fato de que, como no sadismo, ela se baseia na administração deliberada da dor (e na gestão dos afetos daí resultantes).

Neste projeto, pretendo apresentar e desenvolver os conceitos de política da inevitabilidade, de política da eternidade e de sadopopulismo. No rastro de Timothy Snyder, é também minha intenção mostrar por que meandros e processos históricos a política da inevitabilidade entrou em colapso, abrindo caminho para a política da eternidade e o sadopopulismo. Procurarei indicar, além disso, que a perspectiva do historiador americano se ajusta bastante bem ao que temos vivido no Brasil. Por décadas, acreditamos no bordão de que éramos o ‘país do futuro’, e o fato de que nossas expectativas acabavam sempre frustradas não nos impedia de continuamente renová-las em outras bases. Creio, entretanto, que já não é mais assim. A pax lulista – o pacto em que alegadamente todos ganhavam o seu quinhão – foi talvez o ápice mas também o último suspiro desse otimismo persistente. Pode ser que o desalento que se seguiu à derrocada do petismo seja um dado passageiro, um breve interlúdio no decorrer do qual terminaremos por encontrar razões para voltarmos a ser o ‘país do futuro’. Mas pode ser também que o niilismo esteja se enraizando em nossas almas, que ele esteja se tornando um modo duradouro de ser. Como ensinam certos tipos de drogadição, é possível viver indefinidamente no sepulcro de vidro de um mundo fechado sobre si próprio, no qual se é devolvido sempre ao mesmo ponto, a um mesmo gozo triste. Argumentarei que é esse o caminho apontado por Jair Bolsonaro e que o Capitão, de resto, é o grande representante do sadopopulismo à brasileira. Mas a isso pretendo acrescentar que, ainda que de maneira atenuada e disfarçada, a política da eternidade – o ambiente no qual o sadopopulismo opera – é também a direção até agora seguida por muitos de seus opositores, nós. Quem disso duvida que se pergunte o que nos leva a nos rendermos aos ritmos avassaladores das redes sociais, não por acaso um terreno onde o atual presidente se move tão bem. Dia após dia, por horas a fio, navegamos no Facebook ou no Twitter para sermos felicitados ou ultrajados por um fluxo interminável de postagens que, ao induzirem sempre a um mesmo tipo de sensação, congelam o tempo, aprisionam-nos em um presente infinito, interditam o futuro. Nas redes sociais, à semelhança do que acontece sob a política da eternidade, tudo se resolve em termos de um ciclo interminável, um ataque permanente a nossos circuitos neuronais, uma excitação constante, uma ansiedade sem fim, à qual estamos passivamente ligados, já que sua origem está fora de nós, para além de nosso controle. Nas redes sociais, à semelhança do que ocorre sob a política da eternidade, a única saída possível é agredir os outros ou entregar-se ao que se tem chamado de ostentação, uma clara tentativa de compensar a miséria da própria existência com a humilhação dos que são expostos às nossas publicações.

 


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